Constrangimentos na cadeia de abastecimento: para quando o fim?

Constrangimentos na cadeia de abastecimento: para quando o fim?

Ao longo dos últimos meses, tenho participado em diversos espaços de discussão, como webinars e conferências, nos quais se debatem as grandes tendências do setor da logística, sendo que, invariavelmente, o tema dos constrangimentos na cadeia de abastecimento tem assumido uma relevância crescente. Este é o assunto que tem dominado a atenção das empresas do setor, mas também dos economistas, dos governantes e das autoridades monetárias mundiais.

Onde quer que vá, a questão que se coloca é sempre a mesma: quando é que os constrangimentos da supply chain vão terminar? Quando regressaremos à normalidade? Creio, no entanto, que devemos olhar também para outras dimensões do atual momento em que vivemos. Tal como aconteceu no passado, os operadores estão a trabalhar para conseguir encontrar soluções para resolver os impasses logísticos. Precisamos de ter uma perspetiva de longo alcance sobre este problema. Nesse sentido, acredito que outro grande desafio que se coloca nos próximos tempos além do logístico, será também a dimensão do que irá ocorrer no plano da economia com um possível agravamento da inflação e contração no consumo.

Anatomia de uma crise

Antes de projetarmos o futuro, é importante analisar o passado recente para percebermos como chegámos até aqui. Conhecida também como a “crise dos contentores”, a atual situação de constrangimentos na cadeia de abastecimento global é um reflexo da conjugação de diversos fatores, que resultaram naquilo a que muitos já apelidaram de “tempestade perfeita”. Para a complexidade da atual situação, contribuíram quatro grandes fatores:

  • Diminuição da disponibilidade de contentores e número de navios;
  • Congestionamento dos portos por falta de mão de obra;
  • Alteração dos hábitos de compra dos consumidores;
  • Crise energética.

Logo em janeiro de 2020, com a adoção da medida ambiental Low Sulfur1, que tem como objetivo diminuir a taxa máxima de emissões de enxofre de 3.5% para 0.5%, muitos navios viram-se obrigados à colocação de scrubbers2, o que consequentemente levou à diminuição da capacidade dos mesmos e a aplicação de sobretaxas de ajuste do “Bunker”3, dado que o combustível mais “limpo” tem um custo superior ao utilizado até então.

O grande problema da escassez de contentores explica-se mais pela quebra do ciclo da viagem dos mesmos. Com a diminuição do consumo e os constrangimentos nas descargas nos portos de destino devido à Covid-19, muitos contentores ficaram parqueados, sem serem descarregados e reposicionados. Ao mesmo tempo, a crise pandémica levou à diminuição do número de navios em operação.

Quando a China tomou a dianteira da recuperação económica, o stock de contentores disponíveis para escoar os seus produtos para outros pontos do globo, nomeadamente para os Estados Unidos da América – um dos principais destinos das exportações chinesas era bastante inferior ao habitual, originando um desequilíbrio da oferta, relativamente à procura. A este problema somam-se os constrangimentos operacionais causados, pela falta de mão de obra.

Estima-se que todos os meses cerca de 900 mil contentores sejam enviados da China para os EUA. No entanto, neste lado do Atlântico, devido à falta de mão de obra, estamos a assistir a um grande congestionamento nos portos norte-americanos e à diminuição da velocidade de descarga dos mesmos, por falta de capacidade nos armazéns.

Resultado: os contentores marítimos estão parqueados no destino e os navios demoram mais tempo a cumprir as suas rotas, alongando assim o período de reposição dos contentores nos pontos de exportação, em dias/meses.

Nesta equação, há ainda outro fator que emerge: a mudança dos padrões de consumo assente no novo modelo de e-commerce. Uma parte do rendimento disponível das famílias, que antes era canalizado para serviços – restaurantes, cinemas, hotéis, entre outros – foi transferido para a compra de bens de consumo através da Internet, colocando pressão adicional sobre os armazéns e terminais – que passaram a ser muito mais solicitados – e obrigando as redes logísticas a adaptarem-se a este novo modelo focado no “first-mile/last-mile”, para onde todos os recursos disponíveis foram transferidos durante o período da pandemia.

Os constrangimentos causados por este cocktail de fatores exerceram um impacto em toda a supply chain, bloqueando o comércio internacional, conduzindo a uma subida acentuada dos preços dos contentores.

Temos vindo a assistir a uma subida de preço, ao longo dos anos, sendo que durante a última crise de subprime4, o custo/TEU chegou a atingir preços que rondavam os 100 dólares. Em 2019 – 10 anos depois – o custo médio rondava os 2 500 dólares/TEU. Em 2021 alcançámos o record do valor mais elevado, chegando aos 16 mil dólares por TEU, 6 vezes mais do que em 2019.  

Esta subida de preço e a escassez de matérias-primas levou, inevitavelmente, a um aumento generalizado dos preços dos bens no consumo.

Para quando uma solução?

Esta é a one million dollar question. Relativamente ao preço do transporte marítimo, acreditamos que este não deverá sofrer alterações significativas durante o próximo ano, devendo ajustar-se à medida que haja uma estabilização e um equilíbrio entre a procura e a oferta.  Relativamente à normalização da situação da cadeia de abastecimento prevê-se que ocorra ao longo dos próximos anos.

Esperamos também que o problema da falta de mão de obra nos terminais e armazéns, (essencial para o carregamento e a descarga de contentores), bem como da escassez de motoristas, seja colmatado com a progressão da taxa de vacinação, o levantamento das restrições nos vários países e à medida que as pessoas vão regressando aos seus postos de trabalho.

Ao mesmo tempo, os consumidores em todo o mundo estão, pouco a pouco, a voltar a consumir serviços e não, exclusivamente, produtos. Todas estas mudanças vão conduzir a um reequilíbrio das cadeias de abastecimento. Portanto, as questões logísticas serão ajustadas ao longo do tempo.

Em 2020 enfrentamos grandes desafios logísticos e temia-se a possibilidade de não termos acesso a máscaras/EPI, mas esse problema na logística foi resolvido, com rapidez e eficácia.  O mesmo aconteceu com as vacinas para combater a Covid-19. Pelo facto de estas terem de ser mantidas a uma temperatura de 80 graus negativos, pensava-se que não havia uma solução técnica que viabilizasse o transporte e o acesso da população mundial às vacinas. No entanto, logisticamente este impasse foi resolvido. O mesmo acontecerá, certamente, com o problema dos constrangimentos na cadeia de abastecimento: o equilíbrio entre a oferta e a procura será finalmente atingido, mas levará o seu tempo.

Duas vias possíveis para acelerar o restabelecimento do normal funcionamento da supply chain

Na verdade, as grandes questões que se colocam, neste momento, são a dimensão logística e económica. Isto porque, a logística ajustar-se-á às situações, como, aliás, sempre o fez.

Uma aceleração do processo de resolução das disrupções da supply chain global poderia ser feita por duas vias. Ou através de uma ação regulamentar para resolver o problema dos preços – o que não é expectável, dado que nem os EUA nem a União Europeia querem ter uma intervenção neste domínio.

Ou, caso ocorra uma diminuição drástica das tendências de consumo. No entanto, esta não é, de todo, uma opção desejável: a queda abrupta do consumo deitaria por terra a recuperação da economia mundial, gerando uma onda de falências e de desemprego, semelhante àquela que assistimos na crise de 2009/2010.

Ainda assim, os riscos estão à espreita.

Os atuais constrangimentos na cadeia de abastecimento global estão a gerar uma pressão inflacionista. Os preços dos bens de consumo estão a subir – com a inflação na Zona Euro e nos Estados Unidos a atingir valores máximos de 30 anos – e vão continuar a ser afetados por dois fatores adicionais: o aumento dos preços dos combustíveis e a crise global de energia.

E o Natal? Sofrerá algum impacto devido aos constrangimentos provocados nas cadeias de abastecimento?

É habitual verificarmos um aumento exponencial de produtos importados durante o período que antecede o Natal, no entanto, este ano estamos a sentir menor afluência. Contudo, em meses anteriores, como setembro e outubro, constatámos um crescimento nos fluxos de importação colocando-se em valores idênticos em pré-covid.

Estes fatores de aumento de fluxo, fundamentalmente, centrados em produtos de consumo imediato e um pico na importação de produtos da China, está a ser restrito quer pela capacidade de contentores e falta de espaço de armazenagem, quer pelo facto de Portugal ter uma capacidade inferior, face aos países do norte da Europa.

Perspetivas para o futuro: Será a reindustrialização da Europa uma solução para os constrangimentos das cadeias de abastecimento?

Atualmente, verificamos que existem muitos stocks provenientes da produção, e havendo dificuldades no transporte, é natural que estes se avolumem, causando constrangimentos na cadeia de abastecimento. E se até então, a tendência global seria a de stocks baixos, a pandemia levou-nos a perceber que a solução de abastecimento do mundo não estava ajustada. Estamos demasiados dependentes das cadeias de abastecimento longínquas, o que nos coloca bastante vulneráveis às possíveis disrupções de produtos de consumo.

Um dos objetivos da União Europeia será diminuir a distância das cadeias logísticas com a reindustrialização da Europa. O objetivo será recentrar o fabrico, mas com produtos de valor acrescentado, que permitam absorver os custos de produção que na Europa são muito mais elevados.

Este processo, no entanto, é um processo muito longo, entre 10 a 15 anos, pois exige diversos aspetos de grande complexidade, mas é sem dúvida um dos pontos que estará mais em discussão nos próximos anos.

Em resumo, apesar de todas as condicionantes já referidas e dos atuais constrangimentos na cadeia de abastecimento, perspetiva-se que, durante o próximo ano, irão ocorrer desenvolvimentos positivos no sentido da resolução deste problema. Não só a disrupção das cadeias logísticas, como a saída da crise energética e de combustível, irá equilibrar a balança entre a oferta e a procura, mas também a aceleração da campanha de vacinação para a Covid-19 no mundo, permitirá alcançar a normalidade do setor, recuperando também a economia.

1 Low Sulfur: Medida ambiental que tem como objetivo diminuir a máxima emissão de taxa de enxofre, de 3.5% para 0.5%
2 Scrubbers: Sistemas de Lavagem dos Gases de Exaustão (sistemas para precipitação das partículas de enxofre)”os óxidos de enxofre da exaustão são passados por um fluxo de água reagindo com ele para formar ácido sulfúrico e são removidos dos gases de escape que depois passam para fora do sistema”.
3 Bunker: Combustível utilizado no motor de um navio.
4 Crise de subprime: A crise financeira internacional teve origem nos EUA, no Verão de 2007, com problemas nos empréstimos à habitação, naquela que ficou conhecida como a crise do subprime. A economia norte-americana atingiu o seu ponto mais crítico em 2008, com a falência do Lehman Brothers, uma das principais instituições financeiras do país.

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